segunda-feira, 18 de março de 2013

Lamarca, Marcelo Rubens Paiva, Eldorado e eu

O livro Não és tu, Brasil, do Marcelo Rubens Paiva, chegou na minha estante prometendo me contar mais sobre o Vale do Ribeira e sobretudo sobre a cidade onde estava, à época, imersa trabalhando. É um romance à princípio ficcional, mas que mistura um relato bem fundamentado da caçada a Lamarca no Vale do Ribeira e memórias da infância e das férias que Marcelo Rubens Paiva passou na fazenda de seu avô em Eldorado (SP).
A fazenda dos Paiva em Eldorado tornou-se um dos pontos da cartografia sentimental que construí pra longa estrada que cruzava de carro todo tempo, entre Eldorado e Iporanga. Primeiro, sua sede de arquitetura exótica e opulenta pros padrões locais chamava a atenção e virou referência de proximidade com a cidade (e provável fim de expediente). Depois que já sabia de quem havia sido a fazenda, comecei a ouvir as diferentes versões, variando de acordo com o carona ao meu lado: o pai de Marcelo Rubens Paiva tinha sido deputado, delegado, militar,  jogado pros peixes, continuava vivo em algum lugar na mata...os comentários variavam mas não se alongavam, já que ninguém sabia muito da história. Por último, depois de ganhar o livro e ainda sem tempo de lê-lo, passava pela esquisita construção me perguntando que histórias ele me revelaria sobre Eldorado ou Xiririca.
Meu interesse inicial no livro era menos o Lamarca e mais menções sobre os quilombos da região, comunidades nas quais trabalhava. Na primeira vez que estive no quilombo Ivaporunduva, em um estágio de vivência, estava acompanhada de um garoto que certamente desejava de ter vivido a ditadura militar para poder ter se tornado um guerrilheiro. Ele só queria saber do Lamarca, todas as conversas com os quilombolas giravam em torno disso. Eu, achando esse amor à guerrilha bem anacrônico e tendo somente uma vaga noção de quem fora Lamarca, não absorvi muito das investigações de meu companheiro. Lembro de senhorinhas dizendo que o tar do lamarque tinha passado por ali disfarçado de freira, achei tão bizarro que nem consegui processar. Preferi acreditar que no auge do burburinho Lamarquiano tinha passado ali alguma freira mais máscula. Já os homens focavam nas habilidades extraordinárias de artilharia do líder da VPR. A história fantástica que circulava era de Lamarca, em um jipe em movimento, abatendo um lagarto às suas costas sem precisar se virar, fazendo a mira pelo retrovisor.
Três anos depois, de volta à Eldorado para trabalhar, participei de uma atividade em que munícipes dos mais variados "tipos" botavam em uma linha do tempo a história da cidade, que antes se chamava Xiririca. O cerco à Lamarca em plena praça central da cidade foi a lembrança mais barulhenta e excitante do dia.
A descrição desse episódio, acontecido em maio 1970, também é um dos pontos altos da narrativa de Marcelo Rubens Paiva. Lamarca saiu da floresta onde se escondia um dia após o exército jogar a toalha e deixar o Vale do Ribeira. A notícia da fuga iminente correu e Eldorado, abandonada pelo exército, se preparou como pôde pra esperar e deter o guerrilheiro. Os cidadãos eldoradensesA barricada que a Polícia Militar montou era assistida pelos cidadãos eldoradenses afoitos por um pouco de emoção na vida besta de uma cidade minúscula que à época não tinha nem telefone. A cidade estava em peso na praça esperando ansiosamente por Lamarca, e Marcelo Rubens Paiva narra isso com o humor sutil que a situação merece.
Consigo imaginar o clima da praça central então. Em 2011,  Eldorado passou por uma grande enchente do Rio Ribeira que destruiu boa parte da cidade sem distinção de classe ou prestígio. Enquanto mais de 40% do município estava de baixo d'água as pessoas expulsas de suas casas se reuniam e falavam sem parar, em uma excitação semi-feliz que eu não conseguia classificar se era masoquismo ou saber rir das desgraças inevitáveis. Era um acontecimento e isso de alguma forma era bom.
A ternura e graça que de certa forma conectou os eldoradenses nesse momento acabam por ali. Depois que Lamarca consegue escapar em direção à cidade de Sete Barras começa uma verdadeira caça às bruxas. As autoridades da repressão e até mesmo população passam a suspeitar de todos, torturar alguns, estigmatizar outros. Aqueles que arriscaram vidas para assistir ao tiroteio entre os guerrilheiros e a polícia, de repente não sabiam, não queriam mais saber de nada.
Lamarca disse que a população camponesa foi solidária aos guerrilheiros, mas era marketing. Ele e seu bando em fuga foram delatados em todas as oportunidades possíveis. Nada mais natural, ninguém sabia quem eles eram, seus objetivos e a informação que corria era de que eram terroristas. Antes de morrer, no sertão da Bahia, Lamarca chegou a rever os seus métodos e passou a atuar mais em ações educativas do que no treinamento de guerrilheiros. Sua fuga fantástica do Vale do Ribeira só aumentou a sede de sangue dos militares e o preconceito da opinião pública. Os métodos repressivos, prisões políticas, tortura, assassinatos, recrudesceram a cada sinal da guerrilha urbana e rural anti-ditadura no Brasil. A guerrilha não foi produtiva na abertura política nem no processo de formação política das massas.
Esse ponto de vista sobre a luta armada aparece tanto de forma direta quanto indireta, na parte ficcional do romance. O narrador sem nome e seus primos tinham uma gangue de desafetos na cidade, viviam uma guerra constante que termina em aproximação quando Josimar, líder dos inimigos salva sua vida e se torna companhia constante durante os dias de excitação pela passagem de Lamarca. Já uma tia que debandou para a guerrilha passa a viver com um machão amargurado que tolhe sua liberdade, do tipo que salva o mundo, mas ao chegar em casa chuta o cachorro e bate na mulher. O desfecho da história de tia Luíza sugere que, de guerrilheira política, ela passou a criminosa comum depois da abertura, junto com os demais companheiros que viciaram na clandestinidade.
Essa crítica respeitosa aos guerrilheiros talvez seja o ponto mais interessante do livro, junto com a reconstrução cuidadosa e bem fundamentada da incrível fuga de Lamarca do cerco composto por mais de mil homens do exército. As 100 primeiras páginas são difíceis de engrenar. A parte ficcional, mostrando o despertar existencial e da sexualidade do alter ego do autor acaba trazendo um excesso de elementos na narrativa.
E em Eldorado o que aconteceu? Depois que o governo viu o mal que podia causar uma região tão abandonada mandou regularização fundiária, estradas o exército virou de casa, inaugurava tudo. A regularização fundiária mais bagunçou do que ajudou em muitos casos, principalmente naqueles muito comuns de posse comunal da terra. Ah, e pra família Paiva fica uma reclamação: a igreja de Eldorado era virada pro Rio Ribeira porque ele sempre foi a artéria maior da ocupação no Vale. Havia uma conexão grande entre as pessoas e o rio. O fato do patriarca da família paiva fazer a cidade dar as costas pro Ribeira, mudando o lado de entrada da igreja, não deveria ser motivo de orgulho.